O Papa disse “não” (como tem sido amplamente divulgado recentemente). “Não é uma boa tradução, porque fala de um Deus que induz a tentação”. Não há nada de ambíguo no texto original. O Papa Francisco não sugere que a tradução precisa ser melhorada por causa da linguagem, mas por causa da teologia. É verdade que Deus não tenta ninguém (Tiago 1:13-14) e que a palavra para “tentação” também pode significar “testar”. Mas também lemos que Jesus foi levado por Deus ao deserto para ser tentado por Satanás (Mateus 4:1). Temos que reconhecer o papel da Providência de Deus nisso. Como devemos entender essa parte da Oração do Senhor?
Há muito mais nessa frase do que primeiramente podemos presumir. Como observa Samuel Rutherford, quando oramos “não nos conduzas à tentação”, estamos reconhecendo nossa dependência da soberania de Deus. Oramos contra a remoção das influências espirituais das quais precisamos para resistirmos à tentação. “Ansiamos pelo aumento da fé e da graça, e que possamos ter força para resistir ao diabo, ao pecado e a todas as tribulações, ao mal e à maldição nas tentações, como sendo fracos em nós mesmos”.
Rutherford aponta para orações similares nos Salmos: “Desvia de mim o caminho da falsidade” (Salmos 119:29). “Não inclines o meu coração a coisas más, a praticar obras más, com aqueles que praticam a iniquidade” (Salmos 141:4). Ele observa que “orar para ser guiado por Deus em Seu caminho e para não ser conduzido à tentação, deve incluir uma petição para que Deus envie boas influências e não nos abandone no caminho de Sua obediência quando falharmos”. Esta é uma forma de “um filho de Deus se submeter à Sua profunda soberania quando Ele se afasta, e inclinar-se humildemente ao santo decreto do Senhor”. Não seria nenhum conforto acreditar que as tentações que enfrentamos estão fora do controle de Deus. As Escrituras deixam claro que Ele é soberano sobre todas as coisas e tem propósitos sábios naquilo que Ele permite. É difícil para nós entendermos esses mistérios, mas isso não os torna menos reais.
Reconhecemos que (se fôssemos abandonados a nós mesmos) os desejos de nossos corações nos levariam à tentação. Não podemos culpar a Deus se cairmos em tentação. Davi caiu e ainda reconheceu que a culpa era apenas sua (Salmos 51:1).
Rutherford, juntamente com o resto da Assembleia de Westminster, fez com que a luz das Escrituras brilhasse sobre esses grandes mistérios. São assuntos de interesse prático diário para nós, apesar de sua dificuldade. A Assembleia considerou isso como um aspecto dos procedimentos providenciais de Deus para com Seus filhos. A experiência de Jó (Jó 1:12), Paulo (2 Coríntios 12:7) e Davi (2 Samuel 24:1) provam que isso é verdade.
“O sapientíssimo, justíssimo e graciosíssimo Deus deixa muitas vezes, por algum tempo, seus próprios filhos entregues a muitas tentações e à corrupção de seus próprios corações, para castigá-los pelos seus pecados anteriores, ou fazer-lhes conhecer o poder oculto da corrupção e engano de seus corações, a fim de que eles sejam humilhados e para fazê-los dependerem mais íntima e constantemente do apoio dEle e torná-los mais vigilantes contra todas as futuras ocasiões de pecar e para vários outros fins justos e santo.” (Confissão de Fé de Westminster capítulo 5, parágrafo 5).
A Assembleia de Westminster tratou desta questão mais completamente ao expor a Oração do Senhor no Catecismo Maior (Pergunta 195):
“Nesta petição, (a qual é, “E não nos conduzas à tentação; mas livra-nos do mal”), reconhecendo que o mui sábio, justo e gracioso Deus, para diversos santos e justos fins, pode assim ordenar coisas para que possamos ser atacados, frustrados e por algum tempo levados cativos pela tentação; que Satanás, o mundo e a carne estão prontos para nos desviar e nos enlaçar; e que nós, mesmo depois do perdão dos nossos pecados, por causa de nossa corrupção, fraqueza e falta de vigilância, estamos, não apenas sujeitos a ser tentados e dispostos a nos expor às tentações, mas também, de nós mesmos incapazes e indispostos a resistir, sair ou tirar proveito delas; e que somos dignos de ser deixados sob o seu poder; pedimos que Deus governe o mundo e tudo o que nele há, subjugue a carne e restrinja a Satanás, ordene todas as coisas, conceda e abençoe todos os meios da graça, e nos desperte à vigilância no seu uso, para que nós e todo o Seu povo, por Sua providência, não sejamos tentados a pecar; ou, se tentados, que por Seu Espírito possamos ser poderosamente apoiados e capacitados a permanecer na hora da tentação; ou quando caídos, sejamos levantados novamente e recuperados da queda, e que façamos dela uso e proveito santos; para que nossa santificação e salvação sejam aperfeiçoadas; Satanás seja pisado sob nossos pés e sejamos totalmente libertos do pecado, da tentação e de todo o mal, para sempre”.
Deus tem propósitos santos e justos ao permitir a tentação
Deus tinha um propósito ao testar Ezequias e mostrar-lhe o que estava em seu coração (2 Crônicas 32:31) e, portanto, entregou-o a si mesmo por um tempo. Deus tinha um propósito de restringir o orgulho em Paulo e mostrar a suficiência completa de Sua graça (2 Coríntios 12:8). Deus deixou inimigos para Israel enfrentar a fim de testá-lo (Juízes 2: 21-22).
Como o Catecismo continua a mostrar, precisamos compreender, às vezes, o quão incapazes e indispostos somos em nós mesmos para resistir à tentação (Romanos 7: 23-24). Precisamos compreender o poder do mundo, da carne e do diabo para nos afastarmos deles e para compreender a nossa fraqueza contra eles (Tiago 1:14). Às vezes somos deixados às tentações para demonstrar que merecemos ficar em seu poder (Salmos 81:11-12). Ele também pretende nos mostrar a nossa necessidade de vigilância (Mateus 26:41).
Precisamos da graça para nos beneficiarmos da tentação
Precisamos aprender lições ao experimentarmos a tentação, particularmente orar por maior graça e vigilância. Se Deus tem sábios e santos propósitos, devemos aprender quais são, o tanto quanto possível. Isto é o que o Catecismo quer dizer quando diz que precisamos “tirar proveito”. Pedro teve que fazer isso (Lucas 22:32).
A boa providência de Deus pode oferecer ocasiões para a tentação
Precisamos orar contra sermos conduzidos à tentação porque nossa corrupção natural pode tornar qualquer coisa uma ocasião para a tentação. Podemos não estar plenamente conscientes disso. O salmista foi tentado a invejar por causa da boa providência de Deus para com os ímpios (Salmos 73:4). Ele respondeu de maneira semelhante à disciplina de Deus para o seu próprio bem (Salmos 73:14). As coisas boas desta vida podem ser uma ocasião para a tentação (Mateus 22:22; 1 Timóteo 6:9; 2 Timóteo 3:4).
Não é a providência de Deus que precisa mudar, mas nossa resposta pecaminosa a ela (Salmos 62:10). Precisamos orar, portanto, para que “Deus governe o mundo e tudo o que nele há […] e nos desperte à vigilância […] para que nós e todo o Seu povo, por Sua providência, não sejamos tentados a pecar”.
Estamos em perigo de nos expormos à tentação
Pedro estava confiante em si mesmo e não sendo vigilante, expôs-se à tentação (Mateus 26:35). Ele tinha certeza de que estava disposto a dar a vida pelo seu Mestre (João 13:37). No entanto, quando o julgamento chegou, ele não estava disposto a ser identificado com Cristo. Assim, precisamos orar para que a carne seja “subjugada” como um inimigo interno (Salmos 19:13; Salmos 119:133).
Precisamos de força para resistirmos à tentação
Ao orar “não nos conduzas à tentação”, oramos a Deus para que “por Seu Espírito, possamos ser poderosamente apoiados e capacitados a permanecer na hora da tentação” (Efésios 3:16). Como diz um escritor mais antigo, oramos para que a tentação “seja como uma onda que se projeta contra uma rocha, que permanece imóvel, ou como um tiro de dardo contra um peitoral de aço, que apenas lhe quebra a ponta e o lança de volta sem fazer qualquer dano” (Thomas Ridgeley).
A força de que precisamos é da graça santificadora, para nos impedir de cair (Judas 24). Isso nos permite odiar o pecado e amar a santidade e, assim, resistir à tentação como José fez (Gênesis 39:9). Precisamos que a força poderosa de Deus seja equipada com a armadura espiritual da graça (Efésios 6:13-14). Esse teste pode ter um efeito fortalecedor, mesmo que envolva resistir a um leão que ruge (1 Pedro 5:8-10).
Oramos para sermos libertos da tentação
Também oramos para que não fiquemos sob o poder da tentação, mas livres do mal, mesmo que tenhamos caído. Oramos para que não sejamos endurecidos pela falsidade do pecado, mas restaurados (Salmos 51:12; Salmos 23:3). Precisamos orar pedindo a graça para sermos ajudados em tempos de necessidade (Hebreus 4:16), e é por isso que devemos orar para não sermos conduzidos à tentação.
Conclusão
Estas são apenas algumas das razões pelas quais devemos orar dizendo “não nos conduzas à tentação”. Nós certamente precisamos dessa oração em nossa guerra diária contra o pecado. É uma interpretação grosseira esta que ignora o ensino bíblico e diz que Deus está “me empurrando para a tentação para então ver como eu caí”. Está claro nas Escrituras que “o mui sábio, justo e gracioso Deus” ordena as coisas “para diversos santos e justos fins” para que “possamos ser atacados, frustrados e por um tempo levados cativos pela tentação ”.
Como um escritor mais antigo (Thomas Ridgeley) sugere, faríamos bem em transformar essa resposta do Catecismo em uma oração. Precisamos confessar nossa fraqueza e estamos expostos a muitas dificuldades. Achamos difícil passar pelo mundo sem sermos atraídos, afastados ou desencorajados. Precisamos confessar a falsidade e a traição de nossos próprios corações, que nos tornam propensos a cedermos e a nos tornarmos servos do pecado e de Satanás. Assim, buscamos a ajuda poderosa da graça de Deus, para que possamos ser preservados na hora da tentação. Nós oramos por força para vencermos o mundo, mortificar o pecado e resistir ao diabo. Apesar de sermos responsáveis por permanecermos sob a tentação, oramos por graça para que sejamos recuperados, libertos e guardados por toda esta vida.